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Eu sou a Caverna!

Eu sou a Caverna
Ricardo
Ricardo “Lalo” Meurer

– “Eu sou a caverna…”

Há muitos anos ouvi essa frase do meu instrutor de caverna, Lalo

Ela queria dizer, ainda que pouco óbvio, que a partir daquele momento estaríamos (como parte do exercício de treinamento, óbvio), por nós mesmos, eu e meus companheiros de check-out… A dinâmica do exercício pregava que deveríamos mergulhar como se não houvesse ali, um instrutor nos olhando. Mas havia…
Sempre houve.

Pairando como um entidade protetora escura, graças à sua lanterna apagada, tio Lalo sempre esteve ali, a um metro de nós, pronto para nos acudir, se necessário fosse. No meu caso em particular, várias vezes foi necessário. Mas, e é isso que no final importa, a ‘Caverna’ sempre me acudiu, e as coisas aconteceram, por assim dizer…

O sentido por trás da frase

Há muitos anos repito esse mantra para os meus alunos: – “Eu sou a caverna, e lembrem-se, no mergulho, coisas acontecem!”

Parte de um certo terror psicológico, a frase na verdade é repleta e plena de sentido. Diz respeito a um aspecto do treinamento que é, na minha muito particular análise, o.mais importante de tudo: ao submetermos os alunos a condições severas de treinamento, os preparamos para responder com razoável presteza e desembaraço àquelas situações mais complicadas e imprevisíveis, e com isso, os tornamos mais seguros.

Alguns, é verdade, ficam pelo caminho. Nada de errado, sempre digo… trata-se apenas de uma necessidade de mais repetição, mais treino, maior entrega, e no fim, a recompensa vem. Sempre vem.

Mas “ser a Caverna” é um capítulo que só quem passa consegue entender… ser a caverna significa apostar tudo naquilo que você ensinou, que você pensou, que você viveu ao lado dessas pessoas que, sabe-se lá motivadas pelo que, resolveram confiar sua segurança, seu aprendizado, e em última análise, suas vidas, a você.

Você diz, e eles confiam tudo a você…. ou ‘a Caverna’, no caso.

Há alguns meses venho refletindo sobre isso. Eu não sei, falando particularmente por mim, que caminhos me trouxeram até aqui. Não consigo avaliar a segurança que passo ou não, embora tenha ouvido sistematicamente nos últimos tempos que as pessoas ‘tem medo de mim’, seja lá o que quer que isso queira dizer. Não sei se faço as coisas certas ou erradas, se ajudo ou se atrapalho, se é bom ou se é aterrorizante para quem está do lado de lá da minha máscara…. sei que faço com paixão.

Eu sou a caverna

Sou a caverna hoje, nem de longe tão ‘rica’ como as que me precederam, mas o sou com paixão e entrega total. Gosto disso, ao ponto de doer…

Dói quando não dá certo, porque entendo que falhei com as pessoas, e dói quando dá certo, uma dor de alegria gostosa de sentir.
Sou um privilegiado, sempre digo. Tenho o prazer indizível de ver medo se transformar em coragem, dificuldade em habilidade, dúvida em certeza, infância em maturidade. E vejo tudo isso a centímetros de mim, por que há anos passei a ser a Caverna.

Ser a Caverna é curioso…. nos faz viver o mergulho dentro de uma, real, apagados, absurdamente mais atentos a tudo e a todos, em um nível de consciência que chega a estressar….

Estressa, pela responsabilidade, mas encanta pela beleza cênica inenarrável. Põe a gente em sintonia com cada aluno, quase adivinhando os pensamentos deles, vendo cada dúvida, estampada na postura corporal e nos gestos, nos mostra a relutância entre uma escolha e outra, e temos que nos segurar para não por tudo a perder gritando e gesticulando: “Por ali… é por ali!!!”

Mergulhadores saindo da caverna, seguindo seu treinamento
Mergulhadores deixando ‘A Caverna’ para trás

Mas, ao ficar quieto e respeitar o tempo de aprendizado de cada um, como um dia respeitaram o meu tempo (bem… no meu caso respeitaram com muuuuita paciência), vemos o melhor de nós sendo posto a prova.

A cada nova temporada, com novos alunos, vivemos a mesma experiência, de ‘sermos a Caverna’, enquanto esperamos que eles nos surpreendam e façam na água mais do que nós mesmos fizemos, na nossa vez. E eles fazem!!!!

Como escrevi acima, tenho sido abençoado… abençoado com alunos que realizam mais do que eu ensinei, que mostram mais do que eu demonstrei, que realizam mais do que eu sonhei.

Ano após ano

Cada temporada aqui no México tem me presenteado com desempenhos que vão muito além do que eu poderia cobrar, e tem me mostrado que ‘ser a Caverna’ , em geral me dá mais frio na espinha do que neles, mas que na verdade eles estão ali muito melhor do que eu poderia imaginar.

Este ano, como vários outros, vivi a mesma emoção estranha de ser deixado para trás em um mergulho, em uma meio pegadinha onde quase todos os alunos caem, e acabam abandonando ‘a Caverna ‘ à sua própria sorte.

Como disse, é uma pegadinha, um exercício calculado para demonstrar a eles a importância do trabalho em equipe e a rigidez das regras de segurança de não se deixar ninguém para trás.

A cada ano, ao repetir esse exercício “sendo a Caverna”, vejo os alunos indo embora em determinado ponto do mergulho, esquecendo o instrutor (a Caverna, afinal de contas) para trás…

As luzes vão se afastando, o breu total da caverna vai te engolindo, a incômoda sensação de “Caramba!!! Eles foram embora mesmo!” te pega, fica ali você, suas bolhas e a escuridão, e de repente bate uma sensação, ano após ano, de realização: – “Poxa vida… eles conseguem se virar sozinhos, mesmo!!!

Mergulhadores formados
Mergulhadores formados

Quanto vale, afinal de contas, essa sensação???
Quanto vale, afinal, saber que de alguma forma, ainda que pequena, mudamos a vida de alguém para uma determinada atividade?

Ao fim e ao cabo, sendo a caverna, o que espero é sempre estar ali, a um metro deles, pronto para acudi-los, como fui acudido quando precisei, pelo tio Lalo.

No fundo entendo que não, mas espero ser uma Caverna tão boa, quanto foram para mim no passado.

Sei dizer que, sentado sozinho aqui, tomando um mojito nesse final de noite na companhia dos golfinhos no tanque à minha frente, à medida que as luzes dos restaurantes vão se apagando, mais uma vez me deixando no escuro, eu entendo que ter a oportunidade de ‘ser a caverna’ e assim modificar vidas, é maravilhoso…

Obrigado a todos os alunos que vieram para cá e que, com confiança nascida não sei onde, baseada não sei no quê, me permitiram fazer parte dessa metamorfose.

Vocês fazem parte da minha vida, de um jeito que não sei explicar.

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